A Apologia de Sócrates (2005)

Direção Artística e Encenação de Rogério de Carvalho



Escolhemos um texto que não é uma peça de teatro mas um texto filosófico. Trata-se de um processo que abraçámos a bastante tempo, quando foi encenado o Fédon , de Platão, pelo mesmo encenador. A atualidade do espetáculo corresponde ao que considerámos a atualidade de Sócrates, nomeadamente na vertente da desobediência civil e da democracia. Sócrates é apontado como um dos pioneiros do movimento. É bom indicar que a questão é complexa para se responder positiva ou negativamente. Sócrates não estaria do lado da desobediência na sua versão moderna. Não estaria de acordo com um certo tipo de desobediência: a ideia segundo a qual se poderia reivindicar um dever de desobedecer à lei a fim de ir contra a injustiça. Sócrates e Platão tinham uma certa concepção, mas esta concepção não subentende um movimento pelos direitos civis. No espetáculo A Apologia de Sócrates , procura-se, em vão, numa alusão à persuasão, encontrar-se um apelo mais fundamental, o apelo de obedecer à lei, a saber: o apelo de obedecer ao deus e evitar agir injustamente. Um cidadão que não obedece deve persuadir no bom velho sentido da palavra: deve explicar-se diante de um tribunal e justificar a sua desobediência. 

Nenhum grego considerou que um comportamento ilegal possa ser uma forma de discurso nem de persuasão, porque para os gregos, protestar contra uma lei violando a não correspondia a uma tradição e não era concebível. Quando Antígona e Sócrates desobedecem à mesma ordem, não encaram os seus atos ilegais como "meios de pressão", nem elementos de uma "campanha de persuasão". O espetáculo evita este termo de "desobediência civil". Esta fórmula denota uma forma moderna de protesto político, e o espetáculo não recorre a isso para descrever todo o ato relevante de uma transgressão das leis em nome dos princípios.

Uma outra vertente do espetáculo consiste na dicotomia Sócrates/Democracia: existem testemunhos a favor dos sentimentos antidemocráticos de Sócrates, como os de Xenofonte e Platão.


Ficha Técnica

Direção Artística e Encenação: Rogério de Carvalho

 Intérpretes: Laurinda Chiungue, Miguel Eloy, Miguel Sopas 

Tradução do Grego e Texto sobre o Espetáculo: António Monteiro 

Dramaturgia: Rogério de Carvalho, Laurinda Chiungue, Miguel Eloy, Miguel Sopas

Apoio Vocal: Natália de Matos

 Iluminação: José Carlos Nascimento

 Operação de Luz: Guilherme Frazão 

Montagem: Marco Jardim, Paulo Horta 

Produção: Teatro ABC.PI 

Fotografias: Sandra Ramos


NA APOLOGIA DE SÓCRATES


Estamos no tribunal de Atenas, e decorre o ano de 399 a.C., Sócrates é réu de um processo cujos acusadores são Meleto, Ânito e Lícon. O primeiro foi um poeta cuja notoriedade lhe advém mais do facto de ser um dos acusadores públicos de Sócrates do que da sua obra poética, o segundo foi um dos líderes de uma das fações democráticas de Atenas e Lícon, de quem pouco se sabe, terá sido um orador de pouca importância. (...) 

Em sua defesa, Sócrates recusou ler no tribunal um texto elaborado pelo seu amigo Lísias, um dos mais conceituados oradores da época. A leitura de uma peça elaborada de acordo com as regras da oratória judicial ter-lhe-ia sido favorável, maso filósofo advertiu os juízes que iria defender-se usando as palavras que sempre utilizara nos lugares públicos onde todos estavam habituados, desde longa data, a escutá-lo. 

A notoriedade pública de Sócrates não era recente. Aristófanes, que muitos consideram o maior comediógrafo grego, desde há muito que vinha associando Sócrates, quer aos sofistas, praticantes da retórica, quer à simpatia com as ideias da rival Esparta. Sócrates chegou mesmo a ser o personagem central de uma das suas comédias, intitulada As Nuvens, e representada em 423 a.C. 

Era conhecida, na época, a tradição ateniense de defesa da livre expressão, a qual era tida como um dos valores máximos da democracia, atraindo à cidade a elite cultural do tempo. Porém, a história de Atenas, nas últimas décadas do século V é marcada por uma forte restrição deste ideal. O motivo para este facto é a percepção que os atenienses construíram da fragilidade do sistema democrático. A guerra do Peloponeso que se arrastava desde 431 a.C. tivera o seu fim em 404 a.C. com a instauração em Atenas do governo dos Trinta Tiranos que aboliram a constituição democrática de Clístenes e pretenderam reerguer as instituições aristocráticas, tendo sido rapidamente depostos. 



Xenofonte, que também escreveu uma Apologia de Sócrates , e cuja obra constitui outra importante fonte antiga sobre Sócrates, menciona o facto de os acusadores terem feito referência à relação do filósofo com Alcibíades e com Crítias. A intenção era clara: associar Sócrates a reconhecidos simpatizantes do regime espartano e considerá-lo um perigoso inimigo político da democracia ateniense. (...) Este esforço dos acusadores, de estabelecer uma relação de mestre discípulo entre o filósofo e alguns daqueles que publicamente eram identificados como inimigos da democracia, tinha em vista explorar as feridas abertas na sociedade ateniense. Pretendiam reconhecer na prática diária de Sócrates, dialogando com os seus concidadãos, na praça pública, nos locais de comércio, nos locais de convívio, uma atividade subtilmente perigosa para o regime democrático. 

Porém, se a motivação política presente na acusação era grande, a verdade é que não constituía o único elemento, nem sequer o mais importante. A acusação tinha bem presente que não seria fácil imputar a Sócrates nenhum crime público ou político. A estratégia utilizada foi a de também incriminar Sócrates da prática um crime religioso. (...) Curiosamente, nas paredes do templo de Apolo, em Delfos, estava escrita a frase "Conhece-te a ti mesmo", atribuída a um dos Sete Sábios gregos e Sócrates, implicitamente, faz-lhe referência. 

Platão, em vários dos seus diálogos volta a relembrá-la como o cerne da exortação socrática aos atenienses e Xenofonte refere-se-lhe igualmente. Sócrates toma-a como um programa filosófico e como o núcleo fundamental da sua atividade pedagógica. No centro da sua visão filosófica está a preocupação com o agir de forma justa, do agir virtuoso. Nesta medida, a virtude é, para o filósofo, o bem máximo a que o homem pode aspirar, mas a virtude não está desligada da sabedoria e a sabedoria, a que nasce do conhecimento de si próprio, consiste no cuidado da alma. Pelo modo como Sócrates interpreta a predição do oráculo, ele encontrasse, face a Atenas, como um médico que zela pelas almas dos seus concidadãos, reorientando-as para a busca da verdade. 

Esta sua concepção da filosofia levou-o, no contacto com os seus contemporâneos, a atribuir a máxima importância à identificação entre a verdade e a virtude e a subordinar toda a ação humana ao conhecimento da verdade. É a esta luz que devemos entender o modo como faz depender a riqueza da virtude, quando afirma em tribunal que " das riquezas não nasce a virtude, mas que é da virtude que nascem as riquezas e todos os outros bens, quer os privados quer os públicos ." Ao ser acusado de impiedade, de certa forma, Sócrates estava a ser acusado por percorrer as ruas de Atenas, os seus lugares públicos e de convívio, conversando com os homens, filosofando. 

A palavra filosofia ganha aqui uma nova dimensão. Filosofar é buscar a verdade, em si mesmo e nos outros, conversando, praticando o diálogo. A palavra é como que o bisturi do médico que retira da alma o falso saber e abre espaço à busca da verdade, adquirindo uma função precisa, diferente daquela que os sofistas lhe atribuíam. Não é um mero instrumento de persuasão, mas antes um meio de pesquisa do conhecimento acerca de si próprio e acerca daquilo que de imutável possa ser conhecido. 

Este procedimento de investigação, a que passou a dar-se a designação de ironia, constituía a metodologia socrática de trabalho filosófico. Por meio desta técnica, de sucessivas perguntas e respostas, Sócrates afirma levar a cabo a tarefa pedagógica de tornar melhor os atenienses. Em diálogos posteriores Platão dá-nos um quadro do diálogo socrático em que à ironia se vem juntar a maiêutica. A maiêutica viria a ser descrita como uma técnica socrática por meio da qual o filósofo ajudaria os seus interlocutores na busca dos universais. Sócrates, que metaforicamente se afirmava estéril em relação ao conhecimento, ajudava os seus interlocutores a conceberem o conhecimento. Esta procura tinha em vista alcançar aquilo a que Aristóteles designava as definições universais. 

A acusação de Meleto, no entanto, é complexa. Meleto acusa Sócrates não só de ateísmo, ao identificá-lo com um filósofo da natureza, ou com alguns dos sofistas, mas igualmente de introduzir deuses novos, diferentes dos deuses da cidade. (...) A verdade é que a religiosidade socrática aparece aos olhos dos atenienses como, no mínimo, assaz curiosa. Por um lado, Sócrates assume a sua tarefa da prática do diálogo filosófico como uma missão divina de exortação à reflexão de cada um sobre si próprio. Por outro, aceita a orientação de uma voz divina na condução do seu agir. De facto, nada poderia estar mais longe da religião dos seus contemporâneos, para quem a participação em festivais religiosos, a realização de sacrifícios aos deuses, ou o culto dos mortos, constituíam as práticas religiosas habituais. 

Sócrates, do ponto de vista religioso, poderia parecer, aos olhos de alguns dos seus concidadãos, um ateniense perigoso. O maior perigo residia precisamente no convívio que um qualquer cidadão pudesse ter com alguém que defendesse tais ideias. De entre todos, os mais jovens, dada a sua situação, poderiam ser os mais afetados pelo poder "corruptor" de tais ideias. A primeira votação, aquela em que os juízes deveriam decidir se o réu deve, ou não, ser considerado culpado do delito de que é acusado, mostrou que a opinião de pouco mais de metade dos juízes considerou Sócrates culpado.

O filósofo mostrou-se surpreendido com a votação, na medida em que afirmou esperar uma maior margem de votos a favor da sua culpabilidade: dos 500 juízes que constituíam o tribunal Sócrates não foi absolvido por uma diferença de apenas 30 votos. Após esta primeira votação, as regras do tribunal impunham que o réu, considerado culpado, contrapusesse uma pena àquela que era pedida pela acusação (neste caso os acusadores propuseram a pena de morte). A votação seguinte mostra que as manifestações de desagrado dos presentes e dos jurados, face ao discurso de Sócrates, deve ter sido muito grande. Platão já deixara no leitor a ideia de que quem assistia ao julgamento manifestara, repetidamente, o seu descontentamento pela orientação dada por Sócrates à sua defesa. De facto, Sócrates várias vezes fez longos rodeios sem se ater unicamente aos factos, motivo que terá desagradado ao tribunal. O motivo do aumento do desagrado dos presentes teve que ver com a forma irónica como Sócrates propôs a sua pena. Esta ironia terá sido considerada por alguns como desrespeitosa para com o tribunal. Ele, num preâmbulo cheio de ironia, invocou a sua condição de pobreza, motivada pelo serviço prestado à cidade por incumbência divina. Tendo concluído que, se de alguma coisa se considerava merecedor, era antes de um louvor e não de uma punição, pelo que o mais adequado seria propor para si próprio ser alimentado no Pritaneu, como os generais vencedores e os atletas vitoriosos nos jogos olímpicos. De seguida, recusou a ideia da prisão, bem como a do exílio, para concluir propondo uma multa de trinta minas, de que se constituíram fiadores um grupo de amigos presentes em tribunal, de entre os quais figura o nome do próprio Platão.

A segunda votação deixou a claro a irritação dos juízes. Agora 360 juízes votaram a condenação à morte, tendo-se-lhe oposto apenas 140. Após a votação, Sócrates ironiza dizendo aos que o condenaram que a sua conduta foi reveladora de pouca paciência porque, dada a sua avançada idade, o tempo em breve se encarregaria de fazer aquilo que eles acabaram de forçar por meio do tribunal. De seguida, traçou um verdadeiro programa daquelas que serão as escolas filosóficas que se irão reclamar seguidoras do seu pensamento. O filósofo antecipou, de forma clarividente, uma das grandes linhas de força da filosofia do séc. IV a.C., a qual se reivindica de orientação socrática e a que a condenação à morte do filósofo imprimiu uma dimensão insuspeitada pelos que o julgaram. Tratase da inquietação moral que foi uma constante não só do movimento socrático, mas também de toda a literatura socrática.

Esta orientação constituirá o eixo literário e espiritual do século que agora se inicia e será tão fortemente marcante que, mesmo depois da queda do poder político e económico de Atenas, constituirá o núcleo mais influente da continuidade do seu poder espiritual sobre o mundo. Da complexidade desta obra ficam-nos grandes interrogações. Independentemente da decisão acerca da culpa ou da inocência de Sócrates, independentemente da nossa avaliação sobre se se tratou de um julgamento político ou um de julgamento religioso, ou até de qual o peso das pequenas e mesquinhas vinganças pessoais na decisão final.

Fica-nos sobretudo uma dúvida funda, e uma imensa perplexidade, acerca da possibilidade de ter, a maior das democracias da Antiguidade, podido condenar à morte um livre-pensador. Fica-nos também uma aguda inquietação sobre a possibilidade de tal facto poder voltar, ou ter voltado, a acontecer.


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